Contexto da Viagem
O presente Álbum, constitui um exemplo de fotografia de viagem muito particular. A sua importância ultrapassa o âmbito meramente privado ou da curiosidade, já que no seu contexto desenvolvem-se questões mais abrangentes como as relações entre Ocidente/Oriente, arqueologia e colonialismo, a viagem como fenómeno cultural e elitista, ou o domínio imperial e a construção duma cultura imaginária do Oriente.
Nesta apresentação online optou-se por desenvolver os aspectos acima mencionados, em articulação com o pensamento cultural, histórico, literário e artístico ocidental de finais do século XIX - início do século XX. É, pois, sob esta perspectiva que o iremos analisar.
Nele podemos observar muito mais do que um testemunho sobre a educação cosmopolita dos príncipes portugueses, o que também está patente são os testemunhos visuais dum fascínio pelo Oriente. Aspecto a que a fotografia veio dar um contributo essencial, na divulgação pela imagem de determinada ideia do Oriente, construída numa conjuntura de domínio colonial europeu naquela região.
Importa também entender as motivações e as repercussões internas desta viagem, para o poder integrar seguidamente numa análise mais lata.
O álbum documenta a viagem realizada pela rainha D. Amélia, o Príncipe D. Luís e o Infante D. Manuel, entre 28 de Fevereiro e 28 de Abril de 1903, ao longo do Mediterrâneo com destino ao Cairo. A família real foi acompanhada pelos Viscondes d’Asseca, conde de Figueiró, o médico da real câmara D. António de Lencastre, o preceptor dos príncipes, Franz Kerausch, o capelão Fiadeiro e o pintor Enrique Casanova.
O itinerário da viagem tinha como destino final o Cairo, com passagem por alguns dos principais portos do Mediterrâneo como Cadiz, Gibraltar, Oran, Argel, Tunis, Malta e finalmente Alexandria. Em notícias da época, é referido que a viagem deveria ter-se estendido até Jerusalém, mas o álbum não documenta nenhuma imagem desta região. Tratava-se, portanto, da realização do mítico Grand Tour mediterrânico com a sua extensão novecentista ao Egipto e a Jerusalém.
De qualquer modo, em termos de relevância no conjunto do álbum, é evidente que o Cairo e as visitas às ruínas arqueológicas da civilização egípcia foram predominantes e marcantes.
Na viagem de regresso, o iate aportou ainda em Nápoles e Capri, para uma visita às ruínas de Pompeia. A rainha prosseguiu então a sua viagem por terra, a fim de visitar, em Paris, obras e hospitais de beneficência no combate à tuberculose, prosseguindo viagem no iate real, o Príncipe e o Infante.
O álbum é constituído, na sua maioria, por fotografias tiradas pelo Príncipe D. Luís, pelo pintor Casanova e ainda pelo Infante D. Manuel. Algumas imagens dispersas foram também tiradas pela própria rainha ou pelo preceptor Kerausch. Organizado de forma cronológica e geográfica, o álbum apresenta um total 236 fotografias, que foram criteriosamente montadas e distribuídas por 36 páginas, acompanhadas de legendas, manuscritas pela rainha, que identificam as imagens e os autores das mesmas.
Sabemos que existem referenciados, até agora, mais 4 álbuns idênticos (um pertencente ao Palácio Nacional da Ajuda, outro a colecção particular de António Ramires e mais dois ao Paço Ducal de Vila Viçosa) todos eles, segundo parece, organizados pela rainha.
A minúcia, o rigor de identificação dos lugares, dos monumentos e dos autores das imagens, testemunha aliás, o fascínio e a dedicação da família real à fotografia. O rei D. Carlos foi um entusiasta da fotografia, patrocinou e participou em exposições artísticas promovidas pelas associações de amadores da época, assim como existe um significativo espólio fotográfico[1] produzido também pela rainha e pelos príncipes, o que revela ter sido um hobbie apreciado por toda a família real.
Numa viagem com esta importância cultural e paisagística, a fotografia era o meio mais loquaz e na moda para registar todas as etapas do itinerário, servindo também de ocasião para que o Infante e o Príncipe colocassem em relevo os seus dotes fotográficos.
As escassas notícias da época sobre a viagem são parcas em motivos mais elucidativos, referindo apenas que um dos objectivos da mesma era a reconstituição da saúde da rainha, segundo o conselho dos seus médicos, tal como anunciavam os periódicos, O Occidente, 28 de Fevereiro de 1903; p.1 e o Brasil-Portugal, 16 Fevereiro 1903, p. 20)
Refira-se que o contexto político nacional que a monarquia portuguesa vivia em 1903, era atribulado. As lutas dentro do partido Regenerador, em particular entre o governo de Hintze Ribeiro e João Franco, assim como o crescendo da luta republicana, fragilizavam de forma crescente a Monarquia Constitucional. Razão mais do que suficiente para que a viagem da rainha ao Egipto tivesse sido invocada em sessão das Cortes de 11 de Maio de 1903, pelos opositores do Governo, como um episódio que comprovava o desastre da diplomacia portuguesa, servindo de ataque político.
O facto de a rainha não ter sido oficialmente recebida em Nápoles pelas autoridades italianas, na sua viagem de regresso, foi também utilizado por algumas facções para criticar o Governo, por ter colocado a casa real numa situação protocolarmente delicada, podendo a mesma criar tensões diplomáticas entre Portugal e Itália ou mesmo o Vaticano.
Contudo, um artigo de opinião, publicado no Brasil-Portugal, analisava a questão de outro modo defendendo o carácter privado da viagem, já que a rainha para o propósito utilizava o título de Marquesa de Vila Viçosa. Desta forma, ficava fora de questão qualquer obrigação diplomática governamental em relação a esta deslocação da família real, devendo por isso ser “vedado não só ao Protocollo, mas á política, metter o bedelho no assumpto” (in Brasil-Portugal, 16 Julho 1903, p. 190)
Episódio irrelevante, mas cuja repercussão interna denota o clima político de tensão permanente que então se vivia.
A verdade é que ainda que D. Amélia viajasse a título particular, e não em representação da família real portuguesa, acabou por ser recebida por algumas das mais altas individualidades, como foi o caso do coronel argelino Mohamed Ben Daoud (chefe das tropas coloniais argelinas em Oran) [IFN 37273.5.3], do governador geral da Argélia, Paul Révoil, ou do último khedive do Egipto Abbas Hilmi Pasha. Assim como se cruzou em pleno Mediterrâneo, mais precisamente em Nápoles, a 24 de Abril de 1903, com o rei Eduardo VII a bordo do iate Victoria and Albert, poucas semanas depois da sua visita oficial a Lisboa a 2 de Abril, e também com o príncipe Eitel da Alemanha, no mesmo local e data.
A viagem na sociedade novecentista europeia: entre cultura e domínio colonial
O espírito e o culto da viagem, como meio de conhecimento e formação pessoal, têm a sua mais significativa expressão no Grand Tour, espécie de rito de passagem para idade adulta entre as classes aristocráticas e a alta burguesia europeias. O circuito primordial do Grand Tour privilegiava o contacto com as culturas herdeiras da Antiguidade Clássica e do Renascimento, incluindo, por isso, um longo périplo de vários meses que tinha como principal objectivo Itália, mas que incluía frequentemente França e por vezes Espanha. Este circuito tornou-se também essencial na formação e expressão de muitos pintores e escritores, entre os séculos XVIII e XIX, estendendo-se, ao longo do século XIX, até às civilizações do Médio Oriente, particularmente ao Egipto, Síria e à Palestina.
Contudo, ao longo do século XIX, a viagem estabelece-se também como uma das facetas de expansão política do Ocidente para Oriente, no âmbito do designado “colonialismo informal”, baseado na construção duma preponderância cultural das potências colonizadoras, em particular a França, e a Inglaterra, através da produção de conhecimento sobre as grandes civilizações do Médio Oriente. Foi neste pressuposto que “todas as formas de viagem, incluindo a fotografia de viagem, fora dos centros metropolitanos, foi em certa medida tocada pelo colonialismo. “(Peter Osborne, 2000).
No caso do Egipto, o interesse ocidental floresce em resultado das campanhas napoleónicas de 1798. O interesse político expansionista esteve, desde logo, associado à pilhagem patrimonial, além de ter promovido a produção de vasta literatura que seria determinante para a construção dum Oriente imaginário, a que as classes aristocráticas e da alta burguesia ocidentais irão querer aceder de modo crescente. A aproximação que a Inglaterra e a França efectuaram ao Egipto foi baseada num domínio não territorial, mas de forte domínio financeiro e industrial. A implantação do caminho de ferro, sendo o Egipto o primeiro país do Médio Oriente a introduzir este meio de transporte, fazia parte duma estratégia de implantação tecnológica ocidental na região, e seria determinante para um crescendo de domínio das áreas chave de funcionamento do país.
Estavam criadas as condições para que a própria viagem se tornasse num elemento de divulgação e disseminação de estereótipos acerca do Oriente, sendo parte integrante e colaborativa na instauração dum conceito ocidental de Orientalismo, que a teoria e crítica histórica contemporâneas têm vindo a dissecar, como é o caso da obra e do autor de referência, Edward Said, quando refere que o “Orientalismo foi um estilo ocidental para dominar, reestruturando e tendo controle sobre o Oriente” (Edward Said, 1978).
Este controle foi alicerçado também por via do universo artístico, sobretudo, no domínio da pintura e da literatura. Os relatos e as ficções literárias mais significativos datam do século XVIII, mas será no decorrer do século XIX que se irão diversificar de forma mais relevante. Narrativas divididas entre o fascínio e o horror pela decadência oriental, relatos de civilizações “perdidas” que o progressista e evoluído europeu pode ainda vislumbrar, seduzido por um passado indiferente à história, contexto e realidade desses povos e culturas.
O século XIX será particularmente profícuo numa literatura de viagens “oriental”, integrando a obra de muitos dos grandes autores deste período. Entre os francófonos Chateaubriand (1806), Lamartine (1832-33), Nerval (1842) ou Victor Hugo que, com a publicação do livro de poemas Les Orientales (1829), se tornaria a grande fonte de inspiração para pintores como Géricault, Boulanger ou Delacroix.
Na cultura anglo-saxónica, William Beckford é apontado como o pioneiro na literatura de viagens de inspiração oriental com a novela Vathek (1786), secundado por Robert Southey's Thalaba (1801) Thomas Moore's Lalla Rookh (1817), ou Lord Byron com os “Turkish Tales” (1813-1816). Importa referir, ainda, o impacto que a tradução e adaptação de narrativas orientais tiveram na cultura europeia, sobretudo, no início do século XIX, com os contos das Mil e Uma Noites.
É plausível que algumas destas obras fizesse parte da biblioteca da família real, consideradas indispensáveis à formação elitista das classes aristocráticas europeias, em que a monarquia portuguesa se enquadrava.
A viagem que o álbum documenta reflecte, portanto, algumas das motivações e estereótipos culturais vigentes na cultura e sociedade europeia do século XIX, início do século XX, sendo particularmente visível a prevalência de imagens que documentam os mais significativos sítios arqueológicos do Egipto.
O Egipto – Ruínas dum Imaginário Oriente
As imagens das ruínas arqueológicas da civilização egípcia são as mais destacadas e profusas em todo o álbum. Muito embora a preocupação em documentar os legados arqueológicos esteja patente ao longo das outras paragens e visitas, como são os casos de Malta ou Cartago, seria difícil competir com a importância e fascínio do Egipto.
O Egipto tinha-se tornado, desde as invasões napoleónicas, essencial no desenvolvimento da ciência arqueológica, sedimentando uma dinâmica que envolveria algumas das grandes potências europeias como a França, Inglaterra e Alemanha.
As ruínas arqueológicas egípcias foram produto dum expansionismo cultural do Ocidente relativamente às culturas antigas e aos impérios perdidos a elas associadas e tornaram-se, simultaneamente, símbolos dum culto romântico do intocável, e do belo enquanto decadência.
O Egipto que a família real visita estava afectado pelo clima de predominância dos interesses ingleses e franceses na região, aos mais variados níveis, que se tinham iniciado com a ocupação militar do país em 1882 e que só terminaria em 1922.
A crítica histórica contemporânea tratou de traçar e englobar toda a estratégia da ciência arqueológica europeia em relação às civilizações antigas, e à egípcia, em particular, no âmbito dum quadro complexo de reivindicação do saber definido a partir do exterior, do olhar estrangeiro. O Egipto foi assim “olhado, contemplado, representado. (...) inspeccionado e depois reduzido, pelo imaginário popular e pelo turismo, à arqueologia e ao misticismo dos séculos faraónicos. “ (Peter Osborne, 2000). Outros autores, como Foucault, iriam mais longe na sua apreciação crítica acerca do saber arqueológico ocidental sobre o Egipto, ao considerar que o mesmo “esteve ligado a uma das mais poderosas estratégias de domínio imperial, baseadas na vigilância e observação”, naquilo que designa aliás como “arqueologia colonial”. (cit. in Peter Osborne, 2000).
Tal como já referimos, não eram só as narrativas ficcionais ou de viagem que tinham já estabelecido uma certa imagem do Oriente, também a fotografia disseminara de forma mais “real” um certo culto civilização egípcia, tão afincadamente “desenterrada” ao longo do século XIX. A imagem fotográfica trouxe para Ocidente o testemunho descritivo, fiel e minucioso, um novo documento visual dos vestígios arqueológicos egípcios. Ficariam célebres alguns destes primeiros levantamentos fotográficos, como a célebre missão de Maxime du Camp (1822-1894), encomendada pelo Ministério de Instrução Pública francês que, acompanhado pelo escritor Gustave Flaubert realizou, entre 1849 e 1851, um extenso e dos mais impressionantes registos fotográficos das ruínas arqueológicas egípcias, publicado em 1852. Uma vez mais, convém lembrar que o interesse oficial nesta missão fotográfica integrava-se numa política de expansão da arqueologia francesa, que no Egipto teve, e continuaria a ter, interesses muito concretos.
Seriam, aliás, os fotógrafos franceses e ingleses (Francis Frith, por exemplo) que acabariam por predominar como os grandes divulgadores das primeiras imagens do Egipto, mercê do seu vanguardismo no domínio fotográfico, mas também em consequência dos seus mais arreigados interesses políticos e económicos na região.
É por isso particularmente evidente, quando analisamos o álbum da família real, que os pontos de interesse das ruínas arqueológicas egípcias correspondam a um itinerário que obedecia aos desenvolvimentos das escavações e à sua divulgação no Ocidente, o que era determinante para o modo como aquela civilização era entendida e observada.
O álbum e as Ruínas Arqueológicas do Egipto
O contacto da comitiva com as ruínas arqueológicas iniciou-se em Cartago, tal como o testemunha o encontro com Alfred Louis Delattre (1850-1932), mais conhecido como Père Delattre. Arqueólogo e missionário francês enviado para a Algéria e que se tornaria uma das personalidades mais proeminentes no campo da arqueologia, sendo o responsável por grande parte das escavações arqueológicas das necrópoles e das basílicas paleocristãs em Cartago. Foi, ainda, o fundador do Museu Lavigerie de Saint-Louis de Carthage (1875), mais tarde Museu Nacional de Cartago e um dos mais eminentes conservadores do Museu Arqueológico da Argélia.
No álbum, é dado todo o destaque à figura tutelar de Delattre, numa página em que convivem retratos seus de grande plano, entre as ruínas de Cartago, ou acompanhado por D. Amélia. Estas imagens associam-se a outras das ruas de Tlemcen e do seu ambiente peculiar, ou ainda de vistas do porto de Tunis (tiradas pelo Príncipe D. Luís e por Casanova). Outras três páginas são dedicadas a grandes planos das igrejas, mesquitas ou das ruínas, assim como à recepção em casa do coronel Ben Daoud, o chefe das tropas coloniais argelinas em Oran.
Mas foi o Egipto e as suas ruínas que tiveram maior impacto em toda a comitiva, e forma mais cativante junto dos príncipes D. Manuel Infante D. Manuel, e do Príncipe D. Luís, respectivamente com 14 e com 16 anos, autores da maioria das fotografias.
Vivia-se, também em Portugal, um período de intenso interesse pelo Egipto. Eça de Queiroz tinha efectuado uma viagem idêntica até ao Cairo, para participar na inauguração do canal do Suez em 1869, e as suas considerações sobre a sociedade e as civilizações antigas constituem uma das narrativas mais interessantes, críticas e lúcidas sobre o conflito entre a herança cultural e as tensões políticas, económicas e coloniais que se colocavam ao moderno Egipto. [2]
Noutro quadrante, Leite de Vasconcelos[3], o responsável pelo desenvolvimento da ciência antropológica e arqueológica em Portugal, contemplou a civilização egípcia na sua visão do que deveria ser um Museu de Arqueologia. Aliás, se a ciência arqueológica foi a face visível dum mais vasto e complexo sistema de influência e domínio colonial sobre o Egipto, a verdade é que a rede de escavações e o modo como foram sendo conduzidas, acabou por favorecer também um rentável comércio de antiguidades, permitindo o acesso de muitos outros países, menos influentes na região, a acervos arqueológicos egípcios, como foi o caso de Portugal.
Comércio e acessibilidade que a rainha D. Amélia pode capitalizar em proveito nacional, antecipando-se a Leite de Vasconcelos, já que na sequência desta viagem, adquiriu e trouxe para Portugal um conjunto de cerca de 200 peças de antiguidades egípcias, que seriam integradas em 1910 no acervo do Museu Nacional de Arqueologia.[4]
Assim, as páginas dedicadas às ruínas arqueológicas egípcias documentam um itinerário, sedimentado ao ritmo das campanhas de escavações, poeirento, pouco “limpo” no sentido museológico do termo, em que a ruína permanece ainda envolta num caos de pedra e areia.
As páginas e as imagens dedicadas às ruínas organizam-se em torno de três núcleos fundamentais: Necrópole de Mênfis/Sakara; ilha de Philae e duas margens do Nilo, a oriental com Lucsor e Karnak, e a ocidental com Medinet Habu e o Ramesseum.
Os participantes na viagem são, por vezes, fotografados junto às ruínas, dando noção da escala monumental das construções mas, regra geral, as imagens surgem despovoadas de visitantes, deixando espaço para a representação imponente das mesmas sem interferência humana.
Algumas imagens registam também o aspecto exótico de toda a logística de transporte, com planos gerais das colunas de dromedários conduzidas por nativos, transportando os membros da comitiva real pelo deserto. É o caso da página do álbum dedicada à “Excursão a Sakara” (a 28 de Março), tirada pelo Príncipe, em que se pode ver a comitiva, em segundo plano, no deserto, e os guias, em primeiro plano, em descanso. Ou o caso mais evidente da página dedicada à Pirâmide e à Grande Esfinge de Guiza (visitada a 24 de Março), ainda não totalmente escavada, o que só aconteceria em 1925, em que os grandes planos da ruína são complementados com os retratos de Casanova, conde de Figueiró e Visconde d’Asseca.[5]
As excursões efectuadas pela comitiva a Sakara, e particularmente ao colosso jacente de Ramsés II, tiveram como ponto de partida a “Casa de Mariette”. Referem-se à residência do egiptólogo Auguste Mariette (1821-1881), fundador do Serviço de Antiguidades do Egipto e do Museu de Boulaq (1863), antecessor do moderno Museu Egípcio do Cairo e um dos principais arqueólogos a descobrir o Serapium da época de Amenófis IIII. O referido Museu funcionou inicialmente numa parte da sua residência, até à transferência total do acervo em 1902, daí que a visita à casa de Mariette fosse, ainda em 1903, fundamental no percurso iniciático para qualquer “excursão” às ruínas, e esteja tão presente nas coordenadas espaciais do álbum.
Páginas destacadas e de grande interesse ilustrativo são dedicadas a Lucsor e Karnak.
A 2 de Abril, a visita teve como destino o lado oriental de Lucsor e a região dos templos dedicados às divindades. O álbum apresenta imagens do templo construído por Amenófis III (c. 1390-1353 a.c.) e Ramsés II (c. 1279-1213 a.c.), em particular um ângulo invulgar, muito elevado e diagonal, das estátuas monumentais de Ramsés II, do conjunto de pares de colunas, conhecido como a Colunata, que dava acesso ao pátio de Amenófis III, ou o átrio principal do templo com as colunas intercaladas de estátuas. Às ruínas de Karnak são dedicadas duas páginas, com imagens da autoria do Infante D. Manuel e de Casanova, tiradas a 6 de Abril. A famosa Avenida das Esfinges que liga Karnak a Lucsor é objecto de uma das imagens centrais na composição do álbum, rodeada por pormenores do complexo de templos. As famosas colunas decoradas do Hipostilo e outros pormenores de inscrições e murais pintados foram também registados de forma atenta. Mas o álbum retrata igualmente incursões no campo etnográfico, sendo de destacar as imagens obtidas na visita a um acampamento da tribo dos Bisharis, em plena zona do Assuão.
Entre 4 e 5 de Abril, visitaram a ilha de Philae, no rio Nilo, dedicando grande atenção às ruínas do templo dedicado a Ísis (380-362 a.c.), que na altura da viagem da família real estavam já parcialmente submersas, em consequência da construção da Barragem do Assuão, em 1902. [6]
As imagens demonstram que os seus autores (uma vez mais o Príncipe D. Luís, o Infante D. Manuel e Casanova) tiveram particular entusiasmo pelos vários aspectos do templo, alguns com vestígios de construções também gregas e romanas, como o quiosque de Trajano, as inscrições e altos-relevos, assim como o efeito das inundações no local. O elemento água em contraponto às ruínas foi, na série de imagens, muito explorado fotograficamente, pelo inusitado e beleza dos contrastes.
De 7 a 9 de Abril seria a vez da visita ao lado ocidental de Lucsor e ao complexo de templos funerários do vale dos Reis, com apenas uma imagem de vista geral, e as imagens mais detalhadas do túmulo de Ramsés III (1190-1158 a.c.), conhecido como Medinet Habu. As imagens documentam as principais atracções do local, como os dois Colossos de Mémnon, as estátuas de Amenófis III, ou as ruínas do Ramesseum, o templo funerário de Ramsés II, com os restos de colunas decoradas com estátuas de Osíris. Do túmulo de Seti I (1291-1278 a.c.) foi tirada apenas uma imagem das inscrições existentes num dos corredores, revelando o conhecimento que a comitiva tinha da importância deste túmulo, como um dos mais bem documentados vestígios nas suas paredes, da escola de escribas e das narrativas de épicos, como O Livro dos Mortos.( Aliás, o conhecimento arqueológico do túmulo, descoberto pelo italiano Giovanni Belzoni em 1817, com escavações a serem continuadas pelo famoso Howard Carter, a partir de 1902, teve outro importante episódio em 2010, com a descoberta de mais um longo e misterioso corredor no seu interior.
A viagem ao Egipto termina com a documentação fotográfica do canal do Suez. As páginas subsequentes e finais do álbum são dedicadas às ruínas de Pompeia e aos encontros, a bordo do iate D. Amélia, com algumas das individualidades de outras casas reais, em Capri e Nápoles.
Considerações Finais
A família real, cumprindo a tradição das monarquias europeias, foi, assim, ao encontro do romantismo e erudição das ruínas egípcias, trazendo para casa relíquias comercializadas das mesmas, deleitando-se com as marcas duma cultura recuperada pelo Ocidente e para o Ocidente. Nas fotografias deste álbum podem ver-se os vestígios dum olhar europeu sobre o Oriente, não apenas português, demonstrando que o domínio pode ser bem mais vasto e profundo do que aquele que as fronteiras terrestres ditam.
Podemos hoje entender que o interesse turístico pelo Oriente, neste caso do Egipto, foi bem mais do que um novo entendimento, social e cultural do fenómeno de viagem das classes privilegiadas europeias, e que esse interesse correspondia também a estratégias coloniais de penetração económica que, dentro do ecletismo de transição do século, se articulam numa experimentação cultural reconfigurada que passa a ser incluída nos programas de dominação além política.
A prevalência de determinados destinos de viagem não obedecia a critérios de mera fruição, essa constância dos lugares era também sustentada por prerrogativas de conhecimento erudito e esferas de influência política e diplomática que, como vimos, rodeiam também a viagem da família real.
Se o exercício crítico da história condenou todos os modelos imaginários e contemplativos das civilizações “perdidas” e subjugadas, não é menos verdade que a realidade contemporânea do turismo de massas mais não tem feito do que perpetuar uma visão do Egipto envolta em ruínas exóticas. A imagem que os ocidentais hoje têm do Oriente reveste-se de outros estereótipos, talvez não tão românticos nem pacíficos, mas a pergunta mantém-se sobre a profundidade e “realidade” do que afinal conhecemos.
Bibliografia
Diaz-Andreu, Margarita (2007) A world history of ninetenth-century archeology: nationalism, colonialism. Oxford, Oxford University Press.
Osborne, Peter (2000) Travelling Light: photography, travel and visual culture. Manchester, Manchester University Press.
Said, Edward (1978) Orientalism: Western Conceptions of the Orient. 1ªedição. Pantheon Books.
[7] ) O túmulo foi descoberto pelo italiano Giovanni Belzoni em 1817, e as escavações continuaram, a partir de 1902, com Howard Carter. As escavações continuaram até hoje, e em 2010 foi anunciada a descoberta de mais um longo e misterioso corredor.